"Os livros, esses animais sem pernas, mas
com olhar, observam-nos mansos desde as prateleiras. Nós esquecemo-nos deles,
habituamo-nos ao seu silêncio, mas eles não se esquecem de nós, não fazem uma
pausa mínima na sua vigia, sentinelas até daquilo que não se vê. Desde as
estantes ou pousados sem ordem sobre a mesa, os livros conseguem distinguir o
que somos sem qualquer expressão porque eles sabem, eles existem sobretudo
nesse nível transparente, nessa dimensão sussurrada. Os livros sabem mais do
que nós mas, sem defesa, estão à nossa mercê. Podemos atirá-los à parede,
podemos atirá-los ao ar, folhas a restolhar, ar, ar, e vê-los cair, duros e
sérios, no chão.
Quando me pediram para entrar numa sala,
entrei. Não contava surpreender-me. Estávamos numa biblioteca pública e eu era
capaz de imaginar com antecedência o que me queriam mostrar. A senhora que
caminhava dois passos à minha frente era dona de uma voz branda, feita de boa
fazenda, e dizia que se tratava da oferta de um senhor que tinha morrido. O
filho tinha cumprido a vontade do pai e tinha acordado as condições com a
biblioteca: quase nenhumas. A sala não era uma sala, era uma sucessão de salas.
Cada uma delas estava completamente ocupada por estantes cheias. Com a mesma
voz de antes, a senhora explicava-me que os livros tinham vindo nas próprias
estantes onde estavam. Uma empresa de mudanças tinha-se ocupado desse serviço
durante dia e meio, sem parar, meia dúzia de homens.
Eu já vi muitos livros e não contava
surpreender-me mas, depois, prestei mais atenção. Enquanto ouvia a descrição do
cenário em que encontraram os livros - uma casa cheia de livros, todas as
paredes cheias, do chão ao tecto, prateleiras com duas fileiras de livros,
pilhas de livros - foquei o meu olhar nas lombadas, nos títulos. A forma como
estavam ordenados, lembrou-me a caligrafia da minha avó, uma caligrafia
septuagenária, agarrada a uma perfeição talvez desnecessária, a um esforço de
manter a correcção mesmo depois de estar quase tudo perdido, como se essa
correcção pudesse salvar. Tratava-se de uma organização que previa a dimensão
estética - o tamanho das edições, as colecções, as cores das capas - mas,
também, uma vertente literária - géneros, história da literatura - e alfabética
- B depois do A. Por vincos ínfimos, dava para perceber que eram livros lidos.
Mas tão bem tratados, tão minuciosamente acarinhados. Ao mesmo tempo, entre
prateleiras, entre salas, fui percebendo quais eram os autores que,
criteriosamente, não estavam representados e quais os que tinham toda a sua
obra naquelas estantes; fui percebendo quais os períodos e os temas que
interessavam à pessoa que juntou todos aqueles milhares de livros.
É uma vida, repetia a senhora, é uma
vida inteira. E contou que aqueles livros estavam agora à espera de serem
catalogados e, a pouco e pouco, arrumados junto dos outros. Foi nesse momento
que consegui distinguir com clareza o quanto estavam assustados. Olhavam para
todos os lados, não conheciam o futuro que os esperava. Afinal, o eterno podia
mudar com tanta facilidade, bastava um sopro. Foi nesse momento que consegui
distinguir as suas vozes fininhas, a cruzarem-se no ar daquelas salas, cheiro a
livros e a medo. Vestidos com roupas novas, roupas nobres e tão despreparados
para as exigências de uma realidade feita de mãos e transtornos, feita de
pressa real.
Muito tempo depois de sair de lá, a
quilómetros de distância, voltei a pensar naqueles livros. Aquela selecção
privada iria diluir-se nas prateleiras da biblioteca. O fim de uma ilusão
costuma causar-me melancolia. Foi o caso. Muito provavelmente, na memória
daqueles livros, o tempo que passaram nessa casa antiga, protegida, iria
diluir-se também. Daqui a anos, depois de mundo e cicatrizes, ao encontrarem-se
por acaso poderão nem sequer reconhecer-se. Poderão ser como aquelas pessoas
que se reencontram e que não sabem se devem cumprimentar-se ou não e que, ao
não fazê-lo, é como se tivessem deixado de conhecer-se.
Os livros, esses animais opacos por
fora, essas donzelas. Os livros caem do céu, fazem grandes linhas rectas e, ao
atingir o chão, explodem em silêncio. Tudo neles é absoluto, até as contradições
em que tropeçam. E estão lá, aqui, a olhar-nos de todos os lados, a
hipnotizar-nos por telepatia. Devemos-lhes tanto, até a loucura, até os
pesadelos, até a esperança em todas as suas formas."
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